16.6.19

Hiato ainda

Última postagem aqui é de julho de 2017.

Dois anos depois, quase que exatos, volto e ainda estou preso no mesmo tema, o espetáculo Hiato, que agora, apenas agora, começa a ter pequenos e translúcidos contornos. Foram necessários mais dois anos para que eu pudesse percorrer os assuntos que me levam a querer continuar escrevendo, subindo ao palco e realizando. Sempre estive muito identificado com as minhas realizações profissionais - fui chamado de incansável por jornalistas, vivendo as minhas emoções através dos personagens. Dois, três personagens por ano para dar conta da vida. E com o último não foi diferente. Um homem pesado lidando com o seu luto, numa pequena tragédia de Dostoiévski, onde, menos de duas semanas antes da estreia, enterro a minha mãe e subo ao palco, sozinho, e abro o espetáculo dizendo: "Pois é, ela está morta e por enquanto está tudo bem".

 E era só por enquanto mesmo. Pude não precisar lidar com o meu luto por apenas 6 meses. No primeiro dia das mães sem a mãe fui internado num hospital por 21 dias: pancreatite. A maior glândula do corpo humano reagiu ao choque, à dor e ao luto mal metabolizado. De lá para cá não estive mais bem. Há dois anos tenho preciso lidar com questões do meu corpo e com questões da minha alma. Tudo que está na alma aparece rápido no corpo e sou parado, estagnado, freado para poder processar, na dor. Na dor. Coluna, nervo ciático, inflamações, dor de dente. As dores me param, me forçam a olhar logo para a questão que se apresenta. É um convite para resolver. Resolvo? Não. Não resolvo mas recebo o toque, acolho a emoção, digo a ela que estou consciente de sua presença. Algumas vezes a liberto. Outras me apego.

É quando começo a perceber que o tempo, esse senhor tão bonito, se apressa enquanto eu me atraso. Meu tempo é outro. Nos últimos dois anos e seis meses estou em descompasso, em desequilíbrio, torto, manco, coxo.

Neste Hiato.

E agora, exatamente agora, em meio à dor lancinante que me esfaqueia fundo na carne, eu começo a entender essa pausa necessária, esta boca aberta, este abismo meu, Hiato meu. Entre um lugar e outro lugar, numa pausa aparente pois por dentro não há descanso, não há sossego, esse não-lugar que é lugar de dor, de esfriamento, de buraco existencial, de não-pé no chão, em suspenso.

Cordas. Amarrado. Amarração. Cordas que não me sustentam no ar e que mesmo assim me prendem, limitam, ceifam. Em queda não-livre estou . E de olhos abertos. Nem a queda é livre, imagina eu!

É a janela do quarto compartilhado que cheira à morte e arrotos de comida de hospital que se abre como possibilidade de liberdade. E se eu pudesse parar essa dor agora?, penso, reflito, faço algumas contas. Apago e quando acordo retomo o plano. Não fui treinado na dor. Não a conhecia. Não adoecia, nunca quebrei um osso, nunca torci uma junta, nada, nada de dor. Nada daquilo era dor.

Fui apresentado à dor e parece que a safada gostou de mim, se aninhou, fez morada, permaneceu, veio de mudança! Arrumou suas gavetas, se estabeleceu. A dor criou raízes, se hospedou na minha vida, no meu corpo, na minha rotina.

Multifacetada essa dor! São várias em uma. Caminha por mim, rasga, queima, incendeia, lateja, insiste. Se cansa. Descanso. Acredito. Saio. Começo a olhar para fora e, na espreita, a dor sorri. Sorri não, gargalha! Filha da puta. Pede continência, oferece contingência, monta seu altar, quer oferenda, tem fome, me come por dentro. Hiato de mim.

A dor entra pela porta e eu saio pela janela. Tudo bem, não é bem assim, eu não saio pela janela. Eu não tenho mais janela, hoje janela é algo que não tenho. Por onde andam as minhas janelas? Alguém viu uma janela perdida por aí? Bem, janelas eu não tenho. Mas tenho viadutos. Um em especial. Convidativos os viadutos, não acha?

E essa pausa, essa suspensão. Essa vontade de chão.

Em Dostoiévski já tinha o suicídio da visão de quem fica. Em Hiato a história passa por quem vai, por quem tem a coragem, que eu não tive, de ir. Agora uma questão que fica martelando, martelando: se eu tivesse ido, a dor teria ficado?

Em Hiato, pausa, espera, pequeno respiro estou. Pequeno respiro. Fisioterapia pulmonar - ouço como indicação.

Pequeno respiro, superficial, raso. Eu preciso retreinar meus pulmões. São deles os primeiros movimentos. Respira. Não esquece, de novo, de respirar. Respira na rotina, respira na tristeza, na dor. Respira. Respira... Enche os pulmões, você vai pesar, vai começar a descer, respira fundo, deixa pesar, vem vindo, vem vindo, respira profundo... Isso... Isso...

E bota o pé no chão! O tempo agora é outro. Há vida nova. Há vida ao seu redor. Pisa no chão, pisa no chão.

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